Tuesday, August 11, 2009

Existência auto-referida



Acredita-se em geral que tudo é, em princípio, permitido. Existe a lei para cuidar das excessões e definir o que é proibido, delimitar a fração do espectro dos comportamentos possíveis que não convém à sociedade e ponderar reações cabíveis a cada caso. Começo a duvidar disso. Sim, legalmente, burocraticamente, é assim que as coisas estão estruturadas.

Mas entre as leis escritas e a realidade da vida do dia-a-dia há um abismo enorme. Ainda mais do meu ponto de vista brasileiro, em que cumprem-se com afinco exagerado (exagerado?!) leis de trânsito recém lançadas, para em pouco esquecê-las no mesmo limbo em que ficaram todas as outras. A esse propósito, aliás, conheci estes dias o Robson. Robson era motorista de empresas de táxi especializadas em levar e trazer festeiros nas baladinhas de São Paulo, explorando um mercado que surgiu com a lei de tolerância zero no bafômetro. Disse que ele era, pois não é mais. O conheci no trem, ele pedindo informações, ainda desacostumado a este que é a tantos o mais costumeiro dos transportes. Em poucos meses, a lei avacalhou como inescapavelmente avacalham às leis sujeitas à erosão do tempo (o tempo aqui passa mais rápido?). Hoje Robson continua trabalhando nas baladas do Itaim, Moema e Vila Madá. Mas não como motorista. Vende isqueiros. Desses com pinta de isqueiros de luxo, mas ou contrabandeados ou falsificados. Ele os compra a três, quatro reais. Vende por vinte e cinco, trinta. Tá fazendo de quatrocentoas a quinhentos reais por semana. Sim, dá qualquer coisa entre mil e seissentos e dois mil por mês. Ficou interessado em mandar seu curriculum também? Não sei onde é o érre agá.

Recapitulando... o ponto importante: a lei já era. É difícil encontrar pontos de equilíbrio adequado. O que é fluido demais (muita falta de criatividade pensar na água?) cede ao próprio peso e não conserva nenhuma configuração interessante. O que é rígido demais acaba pela própria rigidez magnificando excessivamente o impacto do mundo exterior, submetendo-se à erosão, que pode ser lenta ou violenta, mas sempre inexorável. Pirâmides, lei-seca, essas coisas, físicas ou etéreas.



Como pode então a sociedade organizar-se tendo as leis como forças proibitivas que impedem as pessoas de sairem do curso normal de seu leque infinito de ações permitidas, se estas leis, para todos os efeitos práticos, são desconhecidas e invisíveis à grande maioria? O mistério não é o de entender por que é que as leis morrem, ou não funcionam, ou são invisíveis. Isso faz todo o sentido. O estranho é que, ainda assim, a sociedade funciona.

Ocorreu-me então que a lógica toda, no papel que fotografa o mundo numa foto de exposição lenta e enturvada, aparece aí espelhada daquela que realmente é. A sociedade tal como existe devido às nossas predisposições naturais... A civilização que decorre diretamente dessa nossa pitoresca forma de animalidade gregária, esta baseia-se na proibição total. Tudo é proibido, em princípio. Mas mais que isso, algo mais. Não são puras proibições, como as mecânicas proibições da legislação letrada. Como todas as soluções que a vida encontra por si só, pressionada pela crueldade do acaso, nosso instinto emerge com proibições condicionais. Tudo é proibido, a menos que...

Não é uma proibição ligada à penalização, como a dos tribunais. Os instintos são muito mais sutis e, por isso mesmo, penetram capilarmente muito mais fundo no tecido do dia-a-dia. Prepare-se para ler a palavra "proibido" de uma forma muito mais branda, como talvez "inibido" ou "desestimulado".

É proibido fazer as coisas sem motivo. Vontade? Vontade não é motivo suficiente. Vontade é pessoal. É preciso de coisas que provem uma conexão com o resto do mundo. É proibido dar uma aula, uma verdadeira aula, de alguma coisa pra alguém, se você não for professor. É proibido exibir seus dons artísticos sem que seja sob a redoma legitimante de um grande teatro. Sem que seja cumprido o estranhíssimo ritual do pagamento, ou ao menos da entrega de um raríssimo e vitorioso ingresso à entrada.

Estou exagerando? Você pode dizer que o princípio constitucional aplica-se sim. Que todos são livres, em princípio. Quer exibir seus dons artísticos por aí, porque de repente lhe deu vontade? Pode fazê-lo na rua, é livre. Há músicos que o fazem na frente do Municipal aqui de São Paulo até com uma certa improvisação na infra-estrutura... E se a grande maioria ignora esses exóticos lampejos de inspiração eclodente é tão somente porque falta a estes artistas a lapidação que só pela prática exaustiva e dedicação sistemática finalmente aparece. Argumentará você que estes artistas são ignorados não por alguma proibição instintiva, invisível, de olhar diretamente à arte que não chegou aos ouvidos legitimada pelos bizarros rituais de sociabilização. É uma boa tentativa. Mas o que dizer então do estranho dia em que o Washington Post enfiou o pobre Joshua Bell com seu violino, uma pequena raridade que veio ao mundo em 1713 pelas mãos do próprio Antonio Stradivari, numa estação de metrô, à paisana, pra tocar pro povão ali? Sim, Joshua Bell é um dos top-top na área dessa estridência aguda com cordas. Um sucesso só. Mas ali, assim à toa, foi ignorado pela ampla maioria. Curioso: crianças não ignoravam! (ficar adulto é introjetar as infinitas proibições da vida social?)

E o que dizer do dinheiro? O dinheiro é algo muito bizarro. Muito. Surgiu há muito. Surgiu e ficou, vingou, deu certo. Mas embora o dinheiro regule (ou desregule) a realidade material que continuamente criamos e destruímos, e embora ele já tenha tido como substrato principal duríssimos metais de inquestionável tridimensionalidade... embora tudo isso, o dinheiro é algo profundamente subjetivo, abstrato, estranho.

- Pago cinquenta mil para seus homens trazerem os tratores aqui e ararem todos os alqueires do meu latifúndio, para o próximo plantio de soja.

- Fechado!

E sem os cinquenta mil? Sem os cinquenta mil, não iriam. Era só ir lá e fazer o serviço, estavam livres pra isso. Novamente você vai ficar irritado. Sem dinheiro, como os aradores, benevolentes que fossem, comprariam mais combustível? Como comprariam alimento, cuidariam da própria vida? Mas repare que esta indignação só chuta o problema pra mais ali adiante, onde contudo ele conserva a mesma forma. Se todos fizessem exatamente o que normalmente fazem, sem contudo involver a transação monetária como normalmente o fazem, o mundo ainda assim seguiria da mesma forma. Dinheiro e mundo são coisas separadas. O primeiro é uma abstração, um número do qual insistentemente sempre falamos a respeito. O mundo em si, tecidos, hidrocarbonetos, relógios exóticos e celulares de gosto duvidoso, são materiais, materialíssimos.

Tá, sem dinheiro, essa sequencia inercial da normalidade ficaria sem trilhos. Dependeríamos demais da nossa infinitamente egoísta liberdade pessoal para continuar fazendo aquilo que é pertinente ao todo, à coletividade e tal. Interesses sem sentido explodiriam instanteneamente às alturas. O apaixonado por carros quereria não um ou dois populares, mas um de cada dos melhores do mundo. Dez de cada, por que não? E uma garagem enorme. O dono do plantio de soja lá de cima iria querer que arassem não só a soja dele... Mas que viessem muitos dos melhores tratores. Que fizessem talvez um museu da soja ali num canto, com a monotonamente heróica história da família dele, desde o primeiro Seu João da linhagem. Ou... Ou ia querer só sumir dali. Ir pra uma ilha paradisíaca viver do bom e do melhor, e que outros cuidassem da soja, que não era disso que ele gostava.

Ótimo. Descobri o dinheiro. Sou um gênio estúpido. Você é estudante de economia do primeiro ano e já está revoltado por ter perdido seu tempo chegando até aqui. Não não, esse papel regulador do dinheiro como moderador de nossas ambições eu já conheço, sei que é lugar comum. Há alguma materialidade aí, por assim dizer, mas ainda assim fico com um certo incômodo diante de tanta monetarização na vida. Até que entendo que digerimos isso facilmente porque, antes de mais nada, enquanto abstração o dinheiro é voltado à proibição. Sim, àquela proibição social de que falei antes, meio instintiva, irracional porém incontornável. Argumenta-se frequentemente de que ele funciona como um batente para o desfrute das possibilidades que se apresentam. Mas essa visão ainda é por demais ligada à idéia do agente racional, que há mundo sabe-se que não consegue raciocinar muita coisa de importante na economia. Fosse essa hipótese totalmente correta, mesmo o agente irracional faria mais esforço em aproximar-se de um conhecimento mais absoluto do todo e, no mínimo, prezaria mais pelo próprio dinheiro, sempre. Um mundo de pequenas curiosidades ficam sem explicação, entretanto. O que dizer do super competente porém ingenuo psicólogo que cobra trinta reais a consulta, e tem seu anuncio ignorado por toda sorte de surtados necessitados, enquanto um charlatãozinho qualquer cobra cento e cinquenta e tem logo que contratar uma secretária pra administrar a fila de clientes ávidos? É uma outra variante, aqui exposta ao contrário, da história do violinista. O dinheiro simboliza a proibição. E a proibição é o elo que nosso instinto social amarra ao resto do mundo. Uma proibição que depende do retorno à própria linguagem. Precisa-se pagar por um serviço pois do contrário o prestador não poderá pagar por suas necessidades.

Assim também acontece com as proibições sociais. A sociedade baseia-se em uma referência circular, estruturada sobre uma proibição instintiva existente em cada um de nós que impede que se dê sequencia, que se aceite naturalmente, qualquer ato que soe pouco social. A solidão genuína... ninguém sabe lidar com ela. Grupos de sozinhos, do contrário, com uma cultura particular, encontram seu espaço. A velha história da realidade social da vida do monge isolado, cujo isolamento, para se legitimar, depende de um diálogo estrutural com o resto do mundo.

Sei que está super chato ler até aqui. Mas, pense... Não é porque o texto está tãããããããão chato assim. Nem muito menos porque você não tem o hábito da leitura. Tenho certeza de que vez ou outra, pelo menos, você lê um livrinho com algumas centenas de páginas, beeeeeeem mais longo que esse blog e, eventualmente, quase tão chato quanto. Mas o que torna isso aqui particularmente chato é que, embora não se diga sem pudores por aí, é amplamente proibido escrever demais em um blog! O que eu não sei é QUEM é que proíbe...

Em tempo...

Link para a história do Joshua Bell no Washington Post


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