Friday, January 18, 2008

Curso de línguas...

Vamos ao diálogo em português mesmo, para captarmos a mágica literária da interação entre os envolvidos:


-Há alguém neste escritório?
-Sim, há alguém.
-Quantas pessoas há?
-Há sete pessoas.
-Quantas escrivaninhas há?
-Há duas escrivaninhas.
-Quantas cadeiras há?
-Há quatro cadeiras.
-O que há na parede?
-Na parede há alguns quadros e um relógio.
-São cinco e meia.
-Há alguém neste escritório?
-Não, agora não há ninguém.
-Há alguma coisa sobre a mesa?
-Sim, há alguma coisa.
-Há várias coisas: flores, frutas e uma garrafa de vinho.
-Há alguma coisa sobre a cadeira?
-Não, não há nada. Nada mesmo.


É por conta de diálogos assim que eu sou incapaz de entrar num curso de línguas e participar normalmente das aulas. Minha mente insiste em ver apenas versões como essa:


Um homem de terno, distinto, entra pela pequena porta, vindo da calçada, e pára de frente a uma escrivaninha pequena, baixa, atrás da qual encontra-se uma velha senhora, mal encarada, de óculos grandes e maquiagem mal feita. Ficam se olhando, nos olhos, por cerca de 17 segundos, e então o homem quebra o gêlo.

-Há alguém neste escritório?

A cena volta a ficar estática e mais 6 segundos se passam, até que a voz arranhada e grave da recepcionista ecoa, ríspida e displicente:

-Sim, há alguém.

Dada a qualidade informativa da resposta, o homem põe as mãos nos bolsos da calça... Olha para os lados. Considera por alguns instantes ir logo embora dali e acabar com aquele constrangimento, mas decide continuar tentando estabelecer algum contato humano com aquele ser repugnante.

-Quantas pessoas há?

Desta vez a resposta não demora tanto. Ela é informativa, afinal, embora o tom de má-vontade permaneça presente em sua voz.

-Há sete pessoas.

Certo. E agora? O que mais perguntar? Ela definitivamente não quer conversar... Por que estou aqui, pergunta-se. Meio que sem querer, escapa de sua boca mais uma minguada tentativa de diálogo:

-Quantas escrivaninhas há?

-Há duas escrivaninhas. O senhor é do governo? Da polícia? Pra que tanta pergunta?

Ele a ignora e prossegue com o interrogatório, automaticamente.

-Quantas cadeiras há?

Ela intimida-se um pouco com a insistência desse estranho bem vestido, uma vez que não sabe sua origem e teme algum tipo de problema, e apenas responde, sem entender nada porém com uma certa impaciência:

-Há quatro cadeiras.

-Vocês têm sete pessoas no escritório, duas escrivaninhas e quatro cadeiras... É um arranjo deveras interessante.

Ela permanece indiferente a esta observação perspicaz, olha para o lado. Parece estar mascando um chiclete, embora não esteja. Está impaciente e ficando nervosa. O homem estranho prossegue com seu interrogatório.

-O que há na parede?

Ela grita:

-O senhor por acaso é cego? Na parede há alguns quadros e um relógio. Por que, hein?

-São cinco e meia.

-Há, de repente recobrou a visão! E sabe ler números! Que lindo! Quer que a mamãe dê uma estrelinha de bom menino pra você?! - gritando mais, obviamente.

Centrado como um monge tibetano, em nada nosso bom homem se abala com o nervosismo impregnado na recepcionista desinformada. Apenas prossegue com seu variado leque de perguntas:

-Há alguém neste escritório?

Irônica, jogando as mãos para o alto e fazendo cara insatisfeita de "aaafe!", ela responde:

-Não, agora não há ninguém.

-Há alguma coisa sobre a mesa?

-Sim, há alguma coisa.

Como que ensinando a moça a ser mais precisa em suas respostas, ele prossegue, apontando item a item.

-Há várias coisas: flores, frutas e uma garrafa de vinho.

-Olha, por que não diz logo o que o senhor quer? Eu não tenho o dia todo para ficar aqui com essa palhaçada! Se continuar aí falando bobagens sem dizer por que nos procurou, vou chamar a polícia! O manicômio! Ou o doutor Schneider, assim que ele voltar.

-Onde ele foi?

-Comprar escrivaninhas.

-Há alguma coisa sobre a cadeira?

A recepcionista explode, estressada:

-De novo com essas perguntas?! Qual cadeira?! A minha?! Olha o meu tamanho! Se eu não sou "alguma coisa", então... Que tipo de pergunta é essa, afianal? Algum freudianismo existencialista? Alguma investigação pseudo-niilista da fenomenologia do cotidiano? Pois certamente não é nenhuma descrição parnasiana dos seus arredores, já que o senhor é mais limitado de frases do que nós somos de cadeiras. Ou quer uma descrição física do que está vendo? Sim! Tem sim algo sobre a cadeira! Sou quase 97 quilos de carne, um monte de gordura antes que o senhor diga... que vem aqui todo dia pontualmente às oito da manhã e fica até o fim da tarde pra aguentar loucos como o senhor, que só sabem andar por aí a impurrinhar as paciências dos outros! Eu sou mãe de família, tenho que cuidar dos meus filhos, aguentar o Sr. Schneider, carimbar esses papéis, pagar a propina sempre que o fiscal aparece, e isso na frente de nossa própria câmera de segurança, e em pleno dia da secretária, o que eu ganho? Umas florzinhas michas, um kiwi mal escolhido e uma garrafa de vinho da promoção do Carrefour. Ora, faça-me o favor! Um imbecil como você era tudo o que faltava para fazer meu dia perfeito... Sabe o que há nesta cadeira? Além dos meus quilos de carne e gordura? Há um retrato metafórico da coerção social podando sonhos de uma infância feliz e condensando-os numa desesperançada existência monocromática em que as imposições do cotidiano acorrentam tudo em mim que considero original. Mas nesta cadeira de merda também há esperança de que, ainda que sejam poucos, terei direito aos meus dias de felicidade, em viagens, com outras pessoas que não sejam idiotas como você... Vamos observar o pôr do sol, ignorar a ironia da civilização que se autodestrói enquanto se entorpece de objetivos alucinogênicos, e ter uma sensação transcedental de que a vida pode ter sentido!

Olhando-a fixamente nos olhos... Mãos ainda nos bolsos, corrige-a calmamente:

-Não, não há nada. Nada mesmo.

Retira-se sem demonstrar nenhuma comoção com tudo aquilo, calmamente. A recepcionista, desesperada, soluçando, tenta aliviar-se com uns gritos histéricos. Abre a gaveta da escrivaninha e toma meio frasco de anti-depressivos.

1 comment:

Palpiteiros said...

Pô Axel, nessa vc pegou pesado com os cursos de língua. Ou simplificou demais ou floreou demais... hahahaha

Se os cursos de língua fossem dados no nível Eça de Queirós e sua descrição perfeita de Primo Basílio, imagino que ninguém aprenderia português (Nem eu mesmo!!)

Longe de mim criticar a grande obra do mestre (que por sinal gostei de ler) mas imagina o curso de inglês dado com textos exclusivamente de autores igualmente rebuscantes? Ou de Alemão... Chinês... tá, parei...