Wednesday, September 05, 2007

Tragédia anunciada

Um estudante aplicado, capaz de absorver conhecimento em volume e desenvolver experiência em profundidade. Um cantor versátil, conhecedor de técnicas e teorias e sempre inspirando emoções das mais diversas em quem o vê imerso em sua prórpia voz. Um boêmio incorrigível, sempre rodeado de amigos sem fim nas mesas da cidade, dividindo risadas escandalosas e desafiando a vida a valer a pena. Um escritor com bagagem e estilo, disposto a falar das mais diversas coisas e conhecedor de todas elas. Capaz de mergulhar tão fundo na própria introspecção que sai do outro lado em mundos alheios. Capaz de ser tão altruísta no linguajar que chega vez ou outra a ser compreendido. Um pai amoroso, presente, que abraça os filhos e faz a esposa feliz. Que cuida da casa, ensina valores e é criativo para resolver de alto astral as trivialidades do dia-a-dia. Um piloto que conhece das mais escondidas pistas do garimpo na amazônia aos grandes aeroportos internacionais. Que sabe palestrar sobre pequenas diferenças entre motores Pratt & Whitney e Rolls-Royce de toneladas de empuxo, e que diferencia o carburador bom de um ruim apenas pelo barulho, enquanto descança à sombra num aeroclube qualquer. Um amigo perfeito, capaz de dar bons conselhos, de improvisar boas risadas, de não só não cobrar nada, mas de não querer nunca nada de volta, lá do fundo do íntimo mais escondido. Um funcionário exemplar, que ao invés de se deixar abater pelo contágio da morosidade improdutiva reconhece suas causas e a combate de forma criativa, fazendo a diferença e levando todos a se motivarem novamente. Um esportista incansável que não reconhece nada na existência além do desafio do próximo recorde. Um filho presente e grato pela vida com que foi presenteado, capaz de sempre encontrar tempo para dar aos pais um pouco da atenção que ajuda a sustentar um lar. Um viajante eternamente perdido, nunca capaz de repetir um destino e em perpétuo movimento contrabandeando histórias sem respeitar nenhuma fronteira. Um cientista mergulhado no trabalho e nas questões que enfrenta, capaz de abdicar de todo o conforto financeiro e material para viver o único desafio de encontrar respostas para as causas que o norteiam. Um professor ciente da profundidade de seu papel, blindado contra as espinhosas rejeições do mundo. Um pintor louco, capaz de ver com clareza o que ninguém jamais imaginara. O perfeito cidadão comum, feliz por cima de qualquer irremovível cansaço. Um amante inconsequente, entregue de corpo e alma aos mais explosivos desesperos do imediatismo. Um inventor visionário com um anormal senso de praticidade e prioridade, gerando sempre coisas que transpõe as barreiras da mera curiosidade. Um cidadão do mundo, consciente da história e do presente do planeta, ativo na luta por viabilizar o atendimento de tudo o que é prioritário. Um bom contador de histórias, iludindo a todos com qualquer sequencia de palavras bem cantadas enquanto rouba os mais memoráveis olhares. Um engenheiro com um conhecimento incomum dos mais diversos domínios, especialista em atacar um problema, desde cedo, em seu ponto fraco, e em criar soluções tão simples que parecem sempre ter estado ali.

Hoje acordei anormalmente adulto. Adulto e violento. Estuprei meus sonhos antigos e os atirei, inférteis, à sarjeta. Não posso evitar. Nesta noite acontecerá uma chacina. Matarei diversos eus. Não há mais espaço, em mim, para sonhos infinitos que nunca são. Sei que vou chorar cada morte de mim, mas será apenas até morrer também este eu fresco que chora cinematograficamente por qualquer tragédia mal enunciada. Uns poucos sobreviverão para ocupar um mundo interno agora sem este ruído sem fim que em nada se concentra. Tiveram chances demais, todos eles, não é mesmo? Que exagero desmedido... Sei que eles não vão sumir. Todo ano, em alguma noite escura de lua cheia, num ritual satânico permitirei que um ou outro retorne do completo esquecimento para povoar novamente meus domínios. E será apenas a brincadeira cruel de trazê-lo ao mundo para matá-lo de novo. Quero me sentar em uma mesa com o próprio Fausto do lado oposto. Vou rir dele, e ele vai rir de mim. Mas só pago a minha conta. Quero mais uma dose, depois quero não querer mais nada.

1 comment:

Mel said...

Até que enfim.