Sunday, August 20, 2006

Velha ordem na Terra

"Rebaixado ou confirmado como planeta, Plutão não mudará seu penoso curso, que leva 250 anos dos nossos anos para completar uma volta em torno do Sol. Xena continuará sua vida sombria de bola de gelo. Mas a definição do que eles são ou deixam de ser tem o potencial de provocar uma certa bagunça nas fantasias, nas crenças, nos símbolos, nos sonhos, nos medos, nos risos e nas lágrimas dos homens." [Roberto Pompeu de Toledo, no Ensaio da Veja ed. nº1970]

Pois é. Um grupo de cientistas se reunirá em Praga para discutir sobre isso... Palavras. Chamar ou não pedregulhos gigantes e redondos por "planetas"? E a observação de que, qualquer nome que for, eles continuarão fazendo as mesmas coisas que fazem, sendo por trás das palavras as mesmas coisas que, em silêncio mudo, sempre foram.

O encontro em Praga é um dentre tantos todos os fenômenos que, bem observados, indicam uma coisa só: são as palavras. No fundo, os astrônomos não estão preocupados com os planetas, mas com as palavras que associam a eles. Não querem trabalhar para entender os céus, mas precisam loucamente de todos os debates possíveis para construir um grande castelo de palavras em seus imaginários. E não são só os astrônomos. São todos. Todos.

Dentre as palavras, é claro, os substantivos desempenham esse papel religioso fundamental: substancializam. Constroem o mundo do lado de dentro, o lado que importa. E aí nasce o mundo, afinal só enxergamos das palavras pra dentro. Não é assim, afinal?

Não é verdade que a realidade física manifesta, quer seja de planetas, quarks, muons, olhares, contratos, dinheiros ou projéteis, pouco importa? Afinal, "ter" não é em momento algum da história a posse física atual, mas sim a ameaça futura de retaliações e agressões contra os que ousarem transgredir a posse substancializada pela palavra "meu". E assim também das palavras fazem-se as guerras, os sucessos, os amores, os fracassos. Quão pobre de substância é a matéria sem sua palavra, a ofensa de olhares e imagens se impalavreável... Quão inexistente...

Mas e quanto a esses momentos em que nos colocamos no alto de uma grande paisagem e experimentamos as sensações todas do contemplar, de ouvir o vento, de entender a tarde? São só momentos em que o ser busca se des-substancializar, deixar de ser. São minutos em que se é pra si. Existências desaparecidas pra nunca ninguém saber. E, com efeito, o que fica são apenas as palavras divulgáveis e a todos inteligíveis do que muito se queria ter em segredo.

Um alquimista tentou purificar de todo a complexa substância amor apenas o que fosse sentimento. Julgou pelos antigos princípios de sua ciência que teria assim a maior parte das substâncias envolvidas, mas estava enganado. Terminou com um vidro vazio. Porque essa coisa cheia de sentimentos e só que ele esperava encontrar não é amor. Amor são palavras e atos. São exterioridades apropriáveis, e nunca manifestações invisíveis ou categorizáveis por palavras dúbias. As poesias e declarações não são fruto do amor. São seu alicerce. E é essa a ordem das coisas que se manifesta também em outras substâncias jamais tão bem exploradas pelos alquimistas.

Os substantivos inventaram o homem. Que criou Deus como sua sonhada imagem mas com semelhante dissimulação. E Deus criou o Universo, descançou no sétimo dia. E teria ido para a praia no oitavo, não fosse o desestímulo dos congestionamentos.

Para destruir a humanidade, destrua primeiro as palavras, que imediatamente as engrenagens esquecerão o que é girar e os canhões desconhecerão qualquer sentido de mirar ou atirar. E não importa que de então em diante pouco sobrará neste planeta. O que é, afinal, um planeta?

No comments: