Wednesday, August 23, 2006

João Rodrigues

Chega. Não aguento mais os pobres. Pobres e outros miseráveis de espécies quaisquer. Os sujos. Quero que sumam. Não me importa para onde vão. Não me importa que continuem pobres. Sinto muito, ou melhor, não sinto nada, se eles continuarem pobres, imundos, doentes e bêbados. Só me incomoda quando chegam perto. Na janela do carro pedindo dinheiro. Nas calçadas pedindo comida. Nas praças procurando conversa ou nos trens vendendo qualquer lixo. Sou a favor dos programas que pregam fome zero e ajuda isso ou aquilo porque aí fica bem claro que é responsabilidade dos outros cuidar dessa gente nojenta, doente. Eu quero que o mundo seja feliz, rico, saudável e limpo, mas isso não quer dizer que eu queira ver limpar os sujos, curar os doentes ou enriquecer os pobres. Isso dá trabalho, custa tempo e dinheiro. Parte desse tempo e dinheiro são meus e me deu trabalho demais conquistá-los para que tomem gratitamente de mim. Se eles simplesmente sumissem, o mundo já não estaria melhor? Tudo bem, temos que respeitar os direitos humanos e não podemos cometer atrocidades que possam vir a se voltar contra nós mesmos... concordo. Eu também quero ter minha consciência limpa pra viver em paz. Então não precisamos sumir com os pobres, apenas afastá-los. Por que eles vêm falar comigo? Que o governo mate a fome deles, que da minha fartura não quero que levem nem um pedaço. Eu tive a decência de manter minhas mãos limpas para merecê-la, de me perfumar antes de sair de casa e de acreditar que a vida tinha jeito. Se eles cairam no vício, no desencanto, na desesperança, estão tendo a fome e o frio que lhes é meritório, e não quero ousar tirar-lhes essa tão difícil conquista. Eu também tenho pessoas ao meu redor que eu poderia decidir abandonar por me sentir inferior, ou por achar que não me amam o suficiente. Também poderia acordar e decidir que nada vai levar a um futuro que valha a pena e que a única coisa com algum valor são os delírios guardados no fundo de um sujo copo de pinga barata. Mas não. Acordo todas as manhãs e, com algum trabalho, acho razões para tirar a sujeira debaixo das unhas e deixar o álcool somente para quando houver mulheres e piadas por perto. Se os sujos das ruas não acham essas razões, não sou eu quem vai dizer-lhes onde encontrá-las. Talvez esse desânimo seja genético e eles tenham todos uma propensão a desistir da vida. Então é melhor mesmo que morram ou pelo menos se tornem completamente inválidos antes de conseguir se reproduzir, assim talvez em umas duas ou três gerações estejamos todos mais limpos e podendo nos preocupar com outros problemas. Mas volto a insistir: é só eles estarem longe que eu já não me incomodo. Pago para que outros apertem as mãos dos pobres e lhes dêem sopa quente, desde que eu tenha a certeza de que nenhum deles venha tentar me cumprimentar. Prefiro ser roubado aos milhões pelas pessoas limpas e bem vestidas de Brasília do que às migalhas por essa gente com remela no olho e sujeira de asfalto no buraco das roupas.

Eu penso assim e você também pensa exatamente assim, não é? Não? Seja sincero... Se você não pensa assim, então porque você age como se pensasse assim? Enquanto não nos dispusermos a agir de uma forma mais humana, que tal ao menos termos coragem de expor às claras nossos pensamentos e termos coragem de assumir essa sujeira escondida debaixo de nossas roupas limpas e peles perfumadas? Ou então, quem sabe, poderíamos agir de outra forma...

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