Monday, December 03, 2007

A doida do metrô


Sentou-se ao meu lado. Cabelos loiros, compridos. Vestes quase hippies. Aparentando algo como cinqüenta e cinco anos de idade, talvez um pouco mais. Abriu um grande livro. Capa azul. Capa dura. É da coleção Os pensadores, disse a mim mesmo.

Eu iria descer na Luz, faltavam apenas três estações. E então pensei: "faço contato ou não? ah, que mal pode haver? sempre surgem conversas interessantes nessas situações...". E lá fui eu:

- Olá! Desculpe a intromissão, mas está lendo por interesse próprio ou para algum curso?

- Na verdade estou lendo para meu curso de parapsicologia, mas não está tão interessante não... Eu queria mais é atingir meu ritual em breve.

- Ritual?

- É... desde pequena tenho essas visões, sabe? Escuto a música... Não é sempre não, às vezes... Então eu sei do ritual e queria muito poder experimentá-lo....

Eu acabei não descendo na Luz. Desci na Tiradentes e deixei a conversa se extender por mais meia hora ainda.

Resumindo muito: ela é viúva. Tem filhos. Começou cinco faculdades (enfermagem, odontologia, ciências sociais, psicologia e uma outra que não lembro), mas não terminou nenhuma. Ficou em um manicômio um tempo no início dos anos noventa, por insistência do marido. Viu a companheira de quarto enforcar-se. Está atualmente fazendo um curso de parapsicologia e o padre que ministra o curso insiste que ela tenha o acompanhamento de um psiquiatra. Ela está apaixonada pelo padre e está triste porque ele não lê os textos que ela entrega, não se mostra profundamente interessado. Ela fala deste ritual, que vê desde pequena... É, o sonho dela é deitar numa mesa com um monte de gente em volta e deixar que alguém tire seu coração do peito com uma faca, literalmente, porque ela já viveu tudo nessa vida e a existência lhe é um peso muito grande. Ela tem certeza de que o padre sabe do ritual mas está escondendo dela. Ela queria assistir algumas sessões e depois se ofertar... Ela me explicou coisas sobre Jesus também, que "com certeza" participava desses rituais porque não admitiria a putrefação do corpo. Veja só... Ah, a mãe dela foi excomungada, sei lá porque. E ela disse também que era filha de mãe virgem, e que também por isso deveria ser ofertada aos céus, não era justo deixar sua vida se consumir sem sentido depois de tantos anos ajudando os outros. É, parece que ela trabalhou boa parte da vida em hospitais e etc...

Depois de uns vinte trens perdidos, levantei-me declarando estar atrasado, disse para ela esquecer o padre por quem está apaixonada e ir para Israel com a filha (que está indo pra lá e a está convidando). Entrei no vagão com a porta já fechando.

E eu só queria conversar umas três ou quatro coisinhas sobre Voltaire, talvez nem tanto...

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