Monday, January 12, 2009

Entendendo as micaretas


Ano novo, tags novos, como já vocês já veem percebendo(vêem? ... não não... apenas veem...). Aliás... Estou ainda totalmente por fora das novas normas do Português (Portugues? Sei lá!) Vou ter que estudar isso com calma... e até lá, continuo gramaticalmente ilhado em meados de 2008, periodo confortável em que minhas tremas reinavam tranqüilas! Sem mais delongas, o tag da vez: "Fichamentos", onde vou tagarelando um pouco sobre minhas leituras da semana.

E nesta semana retomei a leitura de uma das seis edições da revista Tempo Social que tenho, impressas, em minha coleção. (Quem quiser acessar as edições digitais, basta procurar aqui no SciElo) Li o interessantíssimo artigo de Benoit Gaudin, entitulado: "Da mi-carême ao carnabeach - história da(s) micareta(s)".

Se você pensa que as micaretas são festas modernas, que surgiram espontaneamente depois que você fez 14 anos e seu pai começou a deixar você viajar pra Porto Seguro com o pessoal do colégio, engana-se! A gênese das micaretas volta na história até o tempo em que as relações culturais Brasil-Europa ainda eram muito mais estreitas do que atualmente (talvez seja mais apropriado dizer que eram muito mais unilaterais), e a abolição da escravidão ainda estava por vir.

No final do século XIX, comemorações carnavalescas ainda eram basicamente festas à moda européia, voltadas à elite da sociedade. A abolição da escravidão finalmente permitiu que um forte componente da cultura africana fosse inserido nessas festas, tanto no âmbito musical como na vestuária e mesmo nos costumes festivos. O termo que iria evoluir para a versão atual vem de "mi-carême", do francês, que significa "meia-quaresma". Em 1914, já num processo de abrasileiração, a mi-carême passou a ser encarada como um "carnaval fora de época".

Interessante é que nessa mesma época o carnaval de Salvador vinha entrando numa fase de maré baixa, muito desanimada, em boa parte devido à "repressão policial contra as formas culturais e religiosas de origem africana". A própria mi-carême fora transferida para um domingo posterior à Páscoa, para evitar problemas com a igreja, e com isso também "perdeu o sabor, ameaçando morrer".

Como então a micareta renasceu? Se forças culturais e inércias sociais são forças inegáveis a balizar o curso da história, o renascimento das micaretas vem nos lembrar do papel imprescindível do acaso, da aleatoriedade mesmo, na definição de uma história particular dentre todas as histórias possíveis... Explico! Na década de 30 do século XX as grandes cidades polarizavam as festas carnavalescas. Feira de Santana, localizada ao lado de Salvador, era praticamente esvaziada na época do carnaval devido às "migrações festivas". Quem realmente queria aproveitar o carnaval abandonava a cidade e se dirigia a Salvador.

[...] em 1937, uma chuva diluviana impediu que o carnaval fosse comemorado normalmente e os foliões feirenses, inconformados e frustrados, decidiram postergar os festejos momescos, realizando-os algumas semanas depois da data convencional. O sucesso do primeiro "carnaval fora de época" feirense que surgiu dessa decisão foi tal, que a festa se repetiu nos anos seguintes e tornou-se a mais animada do ano, eclipsando o próprio carnaval que, a partir de então, deixou totalmente de ser celebrado.

Em 1949 outro evento marcante: "dois eletrotécnicos e músicos de Salvador, Osmar Macedo e Antônio Adolfo do Nascimento (o Dodô), inventaram o que mais tarde seria o trio elétrico: em 1949, ainda não se falava de trio mas sim de dupla elétrica, pois os dois se apresentavam sós, tocando num carro aberto (um velho Ford Fobica de 1929), com suas guitarras baianas (também invenção deles) ligadas na bateria do carro."


Daí pra frente a coisa toda foi evoluindo de forma razoavelmente orgânica... A "dupla elétrica" evoluiu para trio elétrico, o carro foi substituído por caminhão, o termo "trio elétrico" passou a ser confundido mais com o caminhão em si do que com os artistas musicais que se apresentavam sobre ele... Inicialmente, as apresentações eram abertas, ocorriam pelas ruas, e eram custeadas pelas prefeituras das cidades e também por empresas de bebida, porém os trios elétricos foram ficando cada vez mais caros, até que evoluíram para eventos fechados, que permitiam cobrar diretamente dos "foliões" uma taxa determinada.

Curiosidade: "O abadá só foi criado em 1992, e sua criação é reivindicada pelo bloco de trio Eva".

Concluindo... Gostei muito de ler esse artigo, em primeiro lugar porque sua profundidade analítica faz saltar aos olhos a importância do que posso chamar de perspectiva histórica, ou seja, a ampliação de olhar gerada pela consideração da história de um fenômeno, ao invés da simples apreciação fria de seu aspecto atual. Pude ver ao longo do artigo como as forças presentes no substrato cultural baiano escorreram ao longo da história, com seu curso sofrendo desvios por força do acaso ou do conflito com outras forças também presentes, levando pequenos eventos isolados a compor o que hoje pode ser considerado uma grande instituição, uma organização estabelecida. Assim, paralelamente, essa perspectiva história nos abre os olhos para a dimensão escondida de eventos que hoje nos parecem pequenos, isolados e insignificantes, mas que guardam em si um potencial inimaginável para estruturar algo maior no futuro.

Em segundo lugar, a leitura do artigo foi interessante por constituir um exemplo claro de fenômeno de emergência, entendendo aqui emergir no sentido de surgir. Os atores que compõe o fenômeno como um todo não estão planejando toda a seqüência histórica que suas ações localizadas, microscópicas, os fará descrever. Embora exista uma lógica inteligível no processo de crescimento do fenômeno "micareta", principalmente em sua profissionalização a partir dos anos 50 com o advento do trio-elétrico, salta-me claramente aos olhos uma espécie deirracionalidade subjacente de seus agentes ao longo das décadas.

REFERÊNCIA: GAUDIN, Benoit. Da mi-carême ao carnabeach - história da(s) micareta(s). Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12(1):47-68, maio de 2000.

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